04/12/2016
Aos 86 anos, morre Ferreira Gullar
[0] Comentários | Deixe seu comentário.Morreu hoje no Rio de Janeiro, aos 86 anos, o poeta, escritor, ensaísta, crítico de arte, tradutor, biógrafo, teatrólogo e colunista da Folha, Ferreira Gullar.
Um dos maiores autores brasileiros do século XX e imortal na Academia Brasileira de Letras ocupando a Cadeira 37 desde 2014, Gullar estava internado no hospital Copa D'Or há cerca de 20 dias devido a insuficiência respiratória causada por uma pneumonia.
Na minha memória, uma esbarrada em Ferreira Gullar num dos corredores da antiga Livraria Francesa, do Copacabana Palace.
Da Folha:
Com grande independência, quase sempre remando contra a corrente no poder, Gullar frequentou diferentes regiões de um amplo espectro ideológico. Renovador da linguagem poética e teórico da vanguarda, anos mais tarde ele enxergaria com olhos severos os rumos da arte contemporânea. Militante comunista, fez-se um rigoroso tribuno contra a esquerda no poder desde os primeiros momentos do governo Lula.
Sua fisionomia angulosa, cheia de vincos expressivos, fez a alegria dos designers gráficos, que a reproduziram ampliada em inúmeras capas de livros e revistas. Ao vivo, o corpo magro e frágil contrastava com o vigor escuro do olhar, o nariz proeminente que lhe dava um perfil de índio andino, os óculos metálicos dominando o rosto de fora a fora, a espessura das sobrancelhas, o gesto constante de levar as mãos à cabeça e ajeitar os cabelos muito lisos, brancos e compridos, ou então enxugar com o canto dos dedos a saliva acumulada nos lábios grossos.
Nascido em 10 de setembro de 1930, o maranhense José Ribamar Ferreira se espraiou em praticamente todos os campos da cultura, da poesia de vanguarda à canção popular, da teoria estética ao jornalismo, da ilustração de livros infantis à teledramaturgia. Quase sempre, com forte ênfase política. Para se distrair, entregava-se à reprodução de quadros de Mondrian e outros de seus mestres europeus, fazia colagens com recortes de revistas ou traduzia poesia. Está entre os primeiros nomes da extensa lista de biografias que ainda precisam ser escritas no Brasil.
Filho do comerciante José Ribamar Ferreira e da dona de casa Alzira Goulart, que lhe inspiraria o nome literário, Gullar publicou seu primeiro livro em edição do autor em sua São Luís natal, em 1949. "Um Pouco Acima do Chão" não teria lugar nas futuras edições de obra completa organizadas pelo poeta: trata-se, diz ele, de "um tateio inicial", "um livro ingênuo".
O seu segundo trabalho, de 1954, também saiu em edição do autor, mas de ingênuo não tinha absolutamente nada. "A Luta Corporal" foi a fagulha de um novo tipo de escrita que nos anos seguintes mudaria as noções tradicionais de verso, página, livro de poesia —em resumo, a própria poesia, tal como a entendíamos até então.
Escrito solitariamente, quando o autor já vivia no Rio (desde 1951), mas ainda tinha poucas conexões com o mundo literário, o livro soava como um salto radical em todas as dimensões —sonoras, gráficas, semânticas— e todas as possibilidades que a palavra impressa poderia oferecer.
"Diagramado e editado por mim, ele refletia a preocupação com a utilização do espaço em branco na estruturação espacial dos poemas, como também na titulagem e no uso da página em branco, feito camadas de silêncio acumuladas nas páginas", recordaria Gullar, anos mais tarde, em seu livro "Experiência Neoconcreta" (Cosac Naify), volume que recupera os seus anos heroicos do neoconcretismo, ao lado dos artistas plásticos Lygia Clark, Hélio Oiticica e outros amigos. Segundo ele, "A Luta Corporal" se encerrava com a "implosão da linguagem". "Mu gargantu / FU burge / MU guêlu, Mu / Tempu - PULCI", escreve ele numa das passagens mais cheias de escombros.
"Naquele tempo eu não tinha família, nem uma vida regular, vivia sozinho num quarto perto da praça da Cruz Vermelha [no Rio]", contaria o autor, anos mais tarde, à equipe dos "Cadernos de Literatura Brasileira". "Era uma vida desligada da realidade comum de todos. Eu vivia, então, 'num clima de aventura'."
Entre seus primeiros leitores, estava o escritor Oswald de Andrade, que apareceu de surpresa para cumprimentar Gullar no dia de seu aniversário, em 1953. O autor de "Poesia Pau-Brasil" tinha lido "A Luta Corporal" ainda nos originais e se impressionou pelo vigor daquele jovem poeta maranhense.
O livro também o aproximou de dois personagens-chave: os irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Decio Pignatari. Conta Gullar que os três poetas entraram em contato com ele por carta, depois de terem lido "A Luta Corporal". Augusto foi ao Rio para um encontro com Gullar, no qual teria manifestado insatisfação com o estado da poesia brasileira naquele momento.
A correspondência inaugurada ali gestou uma das mais importantes revoluções artísticas do século 20 no Brasil, e também uma curta, porém fértil, colaboração entre o grupo dos paulistas e o dos cariocas. Não demorou a nascer também uma das mais duradouras disputas intelectuais do país, que começou em torno da paternidade da abolição do verso tradicional. Isto é, quem foi o primeiro a afirmar que um poema já não precisava mais ser organizado em linhas para ser um poema?
Gullar e os paulistas estavam juntos, na 1a Exposição Nacional de Arte Concreta, realizada em São Paulo em dezembro de 1956. Em fevereiro de 57, quando foi inaugurada no Rio, Gullar publicou no "Suplemento Dominical do Jornal do Brasil" um artigo em resposta a um manifesto de Haroldo de Campos em que explicitava as diferenças que enxergava entre o seu grupo, o dos "cariocas", e os dos paulistas. Para Gullar, Haroldo defendia a subordinação da poesia a equações matemáticas. "Considerando que aquilo era inviável", registraria Gullar, anos mais tarde, "telefonei a Augusto, dizendo que não podia subscrever semelhante teoria. Sua resposta foi que eu então procedesse como me parecesse melhor, pois eles não desistiriam daquela tese."
Agora conhecidos respectivamente como os "neoconcretos" e os "concretos", os dois grupos passariam a reivindicar o pioneirismo na dissolução do verso e na exploração das dimensões concretas da palavra. A disputa, que acompanharia os contendores ao longo da vida inteira, não é facilmente explicável, mas influenciou as gerações de artistas subsequentes e ecoou, por exemplo, no Tropicalismo de Caetano Veloso.
"Lembro-me que defendia a tese de que a questão fundamental da nova poesia não era 'criar um novo verso' (como escrevera Haroldo na ocasião) e, sim, 'superar o caráter unidirecional da linguagem, rompendo com a sintaxe verbal'", rememora Gullar em "Experiência neoconcreta". "Esta tese foi aceita por eles e de algum modo contribuiu para que buscasse solução no poema visual, construído geometricamente no espaço da página."
Mais adiante, o poeta reconhece: "Sem qualquer dúvida, o contato com Augusto de Campos e com suas experiências poéticas me ajudou a sair do impasse a que chegara com 'A Luta Corporal'".
Aquele encontro no Rio, em 1955, ainda renderia, quase 60 anos depois, uma agressiva troca de farpas entre Gullar e Augusto de Campos, relativa às afirmações do maranhense de que foi ele quem apresentou aos irmãos Campos a poesia de Oswald de Andrade, referência central para os concretos. Em artigos publicados na Folha, ambos reconstituíram em minúcias o encontro, realizado no restaurante Spaghettilândia.