04/01/2016
Gizela e a morte de uma mãe, por Rubens Lemos
[0] Comentários | Deixe seu comentário.Do jornalista Rubens Lemos, sobre Gizela, mãe assassinada diante da filha de 18 anos.
Gizela de todas as mães
Rubens Lemos
Jornalista
Preservo meus mortos da deselegante fixação em seus corpos indefesos e incolores de sangue. Meus mortos são meus na memória, analgésico providencial nos meus dias de agonia. Preservo-os pela dignidade desnudada na exposição litúrgica e constrangedora, nas mãos postas de ciclo encerrado. Velórios cansam a alma envelhecida de dores e circunstâncias. Já disse que não quero um para mim. Terminou, me levem e me cremem.
Ainda perplexo, inconformado e incapaz de um gesto prático, confesso agora a quebra da regra de convicção. Olhei, sem contar minutos, tempo suficiente para o rosto inerte de Gizela Paiva Mousinho Silva, assassinada covardemente no segundia dia do ano que foi breve para ela como a criança perdida num parto.
Gizela mantinha a face altiva das mães sancionadas pela liberdade do ventre, incontestáveis de bravura. Gizela, morta, grito instintivo do amor de quem reproduz, de quem amamenta e acalenta. Voltei ao sentimento geral de revolta calado e orgulhoso daquela mulher tombada pelo mal incorrigível da assassina que atirou em seu pescoço.
Gizela vai e volta nas macabras imagens multiplicadas pela mórbida curiosidade popular. Estanca após ser expulsa do seu carro pelos assaltantes. Gira o corpo na decisão do ser humano cheio de coragem indignada. Não, não levariam sua filha, mantida sob armas e ódios de quem é mimoseado pelos teóricos humanóides de ideologia jurássica e passividade cínica. Gizela volta ao carro e a cena é de vida real tão banalizada. Ouve-se o tiro e Gizela é cadáver.
Ao me afastar do caixão, vejo minha mãe, solidária aos pais - Joãozinho Paiva e Paula e aos tios de Gizela, Rita e Elianto, amigos presentes em nossas vidas nas horas dolorosas e preponderantes. Só amigos são amigos de perseguidos por ditadores. Minha mãe escreveu uma carta editada em livro e endereçada à minha irmã, Yasmine, narrando a experiência que vivemos, papai, ela e eu, moleque de pouco mais de um ano, exilados no Chile.
Ao voltar ao Brasil, sem o meu pai, minha mãe, comigo no braço e Yasmine dentro de uma imensa barriga, foi levada a interrogatório no Aeroporto do Galeão por agentes repressores disfarçados de comissários de bordo. Submetida à intensa tortura psicológica para dedurar o marido, ameaçou se jogar comigo da sacada do aeroporto. Mamãe, libertada graças à intervenção de um cassado, ex-deputado federal Erivan França, do MDB, sobreviveu e se arriscou para me proteger, quando ameaçaram me levar para um abrigo da antiga Febem, atualíssima fornecedora de matéria(podre) ao crime.
Mamãe não saiba, mas o livro, só consegui ler uma vez, em prantos, tão sofrido e verdadeiro é o relato. As mães, são a verdade passional na defesa dos filhos. A lógica sem justificativa exata. Gizela morreu para ensinar a lição resistente da valentia guerreira que o rijo músculo masculino jamais igualará. Gizela morreu e não pode ficar impune. Em nome da honra sagrada de cada mãe a chorar por ela. (foto: reprodução Portal G1).