15/06/2009
O prefácio de Vicente Serejo para o livro de Rubens Lemos
[0] Comentários | Deixe seu comentário.“O Homem Óbvio”, livro de crônicas do jornalista Rubens Lemos, que será lançado hoje à noite, no Teatro de Cultura Popular, tem apresentação do advogado Erick Pereira e prefácio do jornalista Vicente Serejo.
Um cronista falando de outro.
Eis o texto de Serejo que está nas páginas do livro de Rubinho.
E DA CRÔNICA FEZ-SE O GÊNERO
Tem sido de um bom realce aplicar à crônica o conceito livre de Mário de Andrade, já impaciente com a discussão em torno do conto naqueles anos de fervura modernista, ao jogar a torta na cara dos teóricos: conto é tudo quando você chamar de conto. E pronto.
A boutade pode não ter atendido aos mais exigentes, mas libertou o conceito de seu sentido métrico. Como se grande fosse romance, médio o conto e a novela, e pequena a crônica. A literatura minimalista veio depois e consagrou a sujeira que a torta deixou.
Algumas décadas depois, em 1980, Antônio Cândido, o maior teórico da literatura brasileira, libertou a crônica da pobreza em que vivia: e se não a fez tão gloriosa quanto os outros gêneros, deu seu imprimátur ao que chamou de uma literatura ao rés do chão.
A linguagem da informática e a nova reforma ortográfica deletaram o hífen, mas, em compensação, ninguém tem como negar a crônica como um gênero literário ao rés da vida. Acabou aquela história de filha de uma velha raiz etimológica - de Cronos, deus do tempo.
É verdade, continuou sendo um breve relato, como nas definições antigas. E, por isso mesmo, ser cronista é dominar esse ofício de resumir num simples lance de olhar toda a paisagem humana e física que a outros parece impossível.
Não é a síntese perfeita do poema. Ritmo e metáfora buscados na palavra, apenas nela mesma, sem mais nada, sem adornos. É a prosa tão livre quanto o olhar. Como se na sua brevidade coubessem - e cabem - o cômico e o trágico, o lírico e o épico. Seu humor é sua grei, seu gado miúdo, pedra e cal na feitura da argamassa de sua alvenaria.
É assim que vejo as crônicas de Rubens Lemos Filho. Como lances de olhar de quem ainda cedo aprendeu a ver o mundo com a lente de repórter. Daí a capacidade de flagrar os sinais da vida. De fotografar as grandezas e misérias humanas, o sublime e o grotesco.
O cronista veio bem depois. Primeiro veio o menino encabulado que chegava à velha redação do Diário de Natal segurando a mão do pai, Rubens Lemos. E ficava ali, quase debaixo da mesa, de tão pequeno. De Isolda e Rubens herdou o sentimento humano, mas também a coragem de viver e o talento para seguir a vida sem medo e sem arrogância.
Rubens Lemos, o pai, foi para minha geração uma escola de jornalismo. Não era um redator técnico, no sentido do saber dos manuais de redação muito em voga naqueles anos setenta. Era um grande leitor e a literatura modelou seu talento. Depois, veio a resistência. E Rubens Lemos parecia estiolar-se, encandeado pelo sol da liberdade em raios de fogo.
Dono de frases curtas que os pontos não separam, mas dão ritmo ao jogo da criação, Rubens Lemos Filho tem o domínio do cronista, o corte e o talhe da descrição exata, sem cair no vale perigoso dos períodos copiosos, intercalados entre vírgulas, sem coesão e sem foco.
Sabe a nesga estreita entre o dito e o não dito. A medida certa do dizer e não dizer, como se as reticências exigissem o lugar certo das revelações intencionalmente inacabadas.
Sobretudo, sabe dizer da melancolia das noivas segundo o olhar de Antônio Maria; da solidão dos pés quando tocam o mar. Do drible alegre do futebol trouxe o jogo dos diálogos; o ir e vir sinuoso que conduz o olho do leitor nas curvas sensuais dessa aventura que é ler.
É verdade que às vezes adjetiva com força, expõe seu amor e seu ódio, sua paixão e a sua revolta, mas esse é um defeito de todos os cronistas e suas crônicas sempre na primeira pessoa, coloquiais e vivas. Por isso mesmo Antônio Cândido percebeu a proximidade da vida, o pulsar bem perto da alma e do chão dessa literatura que se não faz a glória de um gênero e de um povo, sabe contar a vida como ela é, na expressão de Nelson Rodrigues.
Mesmo marcadas pelo crivo pessoal, o livro de Rubens Lemos Filho não é a reunião dos gostos pessoais no sentido da imposição. A bola que rola em alguns textos é a mesma bola que, na forma de metáfora, faz o gol na alegria, na tristeza e na indiferença do seu leitor.
Porque o cronista é verdadeiro mesmo quando parece esconder a verdade nas dobras de suas frases secas, líricas ou melancólicas. Por isso, nas crônicas de Rubens Lemos Filho, como na vida, ninguém é uma unanimidade e os abutres têm fome. Há os bons, os maus e os feios. Há janelas que guardam perigos e por isso nunca são abertas. Garrinha é assassinado outra vez num filme ruim e a vida renasce num jogo do América ou no sonho de ser avô.
Ora, se os cronistas, no olhar macambúzio e genial de Rubem Braga, são os ratos que vivem dos restos do banquete literário, depois dos romancistas, contistas e poetas, se é assim, estão todos convidados a provar desses bicos de pão, desses nacos de carne e desses restos de arroz. Porque tudo isso é a crônica, esse gênero que um dia precisou inventar a si mesmo para existir. E poder contar as histórias e estórias da vida. Como se fosse uma conversa.
Morro Branco, abril de 2009.
Vicente Serejo